Loop

Daniel acorda exausto, após mais uma noite carregada de insónias. Entorpecimento mental irreversível? Provavelmente não, apenas mais um capítulo numa fase deprimente da sua vida, cujo prolongamento parece não cessar.
Minutos antes de despertar, encontrava-se imerso num sonho profundo, subliminarmente envolvido por um manto negro, uma enigmática fumaça capaz de exercer sobre si um poder hipnótico.
Totalmente entregue, Daniel era invadido por um turbilhão paradoxal de emoções, ora terrificado, como que pressentindo uma ameaça iminente, ora fascinado e deslumbrado por esta fumaça. Pelo topo de um farol, pelo cume de uma montanha, por um templo secreto que a erosão do tempo fez questão de esconder ou por uma modesta e rústica igreja, dotada de uma acústica natural sem precedentes, o seu corpo e espírito, numa simbiose perfeita, viajavam à velocidade da luz.
Conduzido pela fumaça nesta viagem astral, acaba, no entanto, por finalmente assentar numa rua qualquer de uma grande metrópole, sendo imediatamente bombardeado com todo o caos citadino inerente a um cenário destes. Observa um colossal relógio digital na rua que marca 18:23h. É hora de ponta. Os buzinões penetram-lhe o cérebro como berbequins; os outdoors, com cores berrantes, ostentam fotografias que parecem querer engoli-lo vivo; as conversas cruzadas ao telemóvel em cada esquina irritam-lhe solenemente; os quiosques vendem jornais e revistas que só perpetuam calúnias e miséria. Toda esta artificialidade, aliada à poluição, às ratazanas que se escondem por entre as sarjetas e, sobretudo, à futilidade e automatismo das pessoas que o rodeiam, asfixia Daniel, ao ponto de desejar entrar em coma profundo e não mais voltar a enfrentar este mundo para o qual não foi talhado.
É então que desperta deste longo sonho. O caos citadino já não o incomoda. É como se um alter-ego seu tivesse ficado para trás. À sua direita, na mesa de cabeceira, contempla o logótipo da Pfizer, impresso numa caixa de ansiolíticos. Enquanto pensa nas doses industriais de químicos que o seu organismo já absorveu ao longo da vida, a sua mente dispersa-se por breves instantes. Toma mais um comprimido e, em poucos minutos, volta a adormecer. Fumaça? Viagens astrais? Não necessariamente. É apenas o recomeço de um ciclo incessante.

Texto já com alguns meses de idade. Tentativa de aplicação de elementos de semiótica.

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